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Rodrigo Ribeiro



A obra de Hannah Arendt tem despertado o interesse de filósofos no Brasil, sendo crescentemente lida, traduzida, interpretada. Para Rodrigo Ribeiro Alves Neto, que publicou Alienações do mundo: uma interpretação da obra de Hannah Arendt (Editora PUC-Rio/Edições Loyola), Hannah Arendt se preocupa fundamentalmente com uma dupla incapacidade vivida pelo homem da modernidade tardia: a de compreender as origens da incapacidade do homem moderno de ser-do-mundo em face das circunstâncias criadas pelo poder da ciência e tecnologia e a de compreender e julgar a novidade dessas experiências. O autor, doutor em filosofia pela PUC-Rio, defende que as tematizações arendtianas de mundo e das diferentes formas de “alienação do mundo” (world alienation) podem contribuir para a compreensão do legado teórico da filósofa.

Hannah Arendt retoma conceitos fundamentais como “esfera pública” e “igualdade”, a fim de esclarecer de que modo as fortes tendências apolíticas e antipluralistas das reflexões tradicionais promoveram uma profunda alienação do mundo e um obscurecimento da dignidade própria da política. Arendt diagnosticou que o mundo moderno promoveu uma perda radical de autonomia da experiência política. Para o entrevistado, a obra da filósofa alemã mostra que, em cada momento histórico e a cada época, a própria história está por ser reescrita e a reflexão sobre o futuro do passado no presente está por ser empreendida de maneira nova.

Nesta entrevista, Rodrigo Ribeiro Alves Neto, autor de Alienações do mundo, fala também sobre os regimes totalitaristas, a relação de Arendt com o seu tempo, a influência de Heidegger na vida da filósofa e o legado da pensadora.

» Editora PUC-Rio: O que é “alienação do mundo”?

Rodrigo Ribeiro: A expressão “alienação do mundo” (world alienation) foi cunhada por Hannah Arendt em A condição humana para denominar o desenraizamento dos homens em relação ao mundo ou o estranhamento do mundo enquanto obra humana e enquanto assunto comum dos homens. Trata-se de um diagnóstico das profundas transformações providas pela era moderna no conjunto dos cuidados humanos mais elementares com o mundo (a vida ativa: trabalho, fabricação e ação) e no âmbito das mais gerais condições mundanas da existência humana (vida orgânica, mundanidade, pluralidade humana, natalidade, mortalidade e o planeta Terra). Mas, em meu livro, utilizo essa expressão em toda a sua amplitude, não somente como uma experiência moderna, mas como uma chave interpretativa para a organização das linhas gerais do pensamento arendtiano. Arendt diz que o mundo é como uma mesa, pois aproxima e, ao mesmo tempo, distingue os homens, instaurando entre eles um espaço intermediário de artefatos e negócios humanos que os congrega sem fazê-los colidir. É a existência desta “mesa” a condição para que possamos estar associados ao invés de justapostos, desprovidos de interesses mundanos, fundidos num só interesse ou fragmentados em interesses privados. A alienação do mundo poderia, assim, ser formulada como a perda desta “mesa” ou desse “espaço-entre” (in-between) que os homens precisam interpor não só entre si, mas também como fronteira entre eles e a natureza, a fim de juntá-los, relacioná-los e distingui-los uns dos outros enquanto seres que agem e falam, sendo vistos e ouvidos, percebendo e sendo percebidos em suas unicidades próprias, uma vez que não são nem Deus, que pode ser prescindido do aparecer, nem animais inteiramente absorvidos na repetição e no automatismo inerentes aos processos vitais.

» Editora PUC-Rio: Qual a importância desse conceito na obra de Hannah Arendt?

Rodrigo Ribeiro: O conceito de mundo ocupa uma posição central em seu pensamento. Creio que a reflexão sobre o mundo como fenômeno originário, a reflexão sobre o homem como ser-do-mundo, como um ser intrinsecamente consagrado ao mundo, na verdade, ocupa uma posição decisiva na obra de muitos pensadores contemporâneos que foram levados a problematizar tanto a metafísica e o idealismo subjetivista quanto o objetivismo naturalista. O significado político, existencial, fenomenológico e hermenêutico do mundo nos leva a problematizar o modo tradicional de conceber esse fenômeno originário e a relação do homem com ele, permitindo-nos analisar um conceito de mundo no qual se transforma a própria essência do homem. Esse empreendimento interpretativo almeja avaliar as diferentes manifestações daquilo que a autora denominou como “alienação do mundo” nos períodos pré-moderno e moderno da história ocidental. Analisando os textos arendtianos, vemos que diferentes configurações de alienação do mundo se manifestam, por um lado, nas conceitualizações tradicionais sobre os cuidados humanos com o mundo (a vita activa) de Platão a Marx e, por outro, nas hierarquias pré-modernas e modernas dos mais básicos engajamentos ativos do homem com as condições mundanas mais elementares da sua existência.

» Editora PUC-Rio: De que maneira a “alienação do mundo” se manifestou ao longo da história?

Rodrigo Ribeiro: Sem dúvida, a perplexidade provocada pelas inéditas experiências políticas vividas pelas massas modernas no século XX, mais precisamente, os regimes totalitários, desencadearam em Hannah Arendt a sua preocupação teórica com o estranhamento do mundo comum e humano. Portanto, a primeira configuração de alienação do mundo analisada no meu livro foi a desmundanização totalitária. Arendt chamou de loneliness (Verlassenheit na tradução alemã e solidão na brasileira) esse colapso do mundo para o qual o totalitarismo foi uma “resposta destrutiva” e uma “fuga suicida”. A solidão é uma experiência de perda do mundo e de si próprio. Segundo Arendt, o decisivo foi tal experiência ter se tornado no século XX um fenômeno de massa, possuindo progressiva relevância política. O que se mostra digno de reflexão é o modo como o totalitarismo organiza, mantém e comanda essa solidão das massas.

» Editora PUC-Rio: Qual o impacto do pensamento de Hannah Arendt no estudo da teoria política?

Rodrigo Ribeiro: É muito significativo, trata-se de uma das mais fecundas compreensões críticas da tradição filosófica ocidental e do mundo contemporâneo, uma reflexão densa e de longo alcance sobre o homem como um “ser do mundo” e sobre as condições mundanas básicas da existência humana em suas diferentes configurações históricas. Elucidando, sobretudo, as condições de alienação do “lado público do mundo” mantido e instaurado pelas iniciativas de agir e falar, Hannah Arendt interrogou e abordou com profunda originalidade os eventos históricos e as transformações políticas do nosso tempo, e fazendo surgir, desse confronto com a atualidade, novos instrumentos de análise que recuperam o vigor de futuro contido no passado da cultura filosófica ocidental.Arendt, em sua tarefa de apropriação crítica das concepções e hierarquizações tradicionais da vida ativa, recuperou uma “outra tradição” do pensamento político ocidental, a greco-romana, que dispõe de experiências e conceitos fundamentais que nos permitem repensar o real significado da confiança dos homens no mundo, sobretudo no lado público do mundo.

» Editora PUC-Rio: Quais eram as principais preocupações e temas presentes na obra da pensadora?

Rodrigo Ribeiro: Apesar de ter refletido sobre muitos temas e ainda que o conjunto das suas reflexões seja multifacetado, creio que a obra de Hannah Arendt é atravessada por uma dupla preocupação fundamental que se corresponde a uma dupla incapacidade vivida pelos homens na modernidade tardia: trata-se de compreender as origens da incapacidade do homem moderno de ser-do-mundo em face das circunstâncias criadas pelo poder da ciência e tecnologia, e ainda a incapacidade de compreender e julgar a novidade dessas experiências. A Condição Humana é a obra fundamental para analisar uma dessas incapacidades: aquela que diz respeito à degradação pré-moderna e moderna da ação e, por conseguinte, ao obscurecimento do lado público do mundo. Em A Vida do Espírito, Arendt examina os contornos da outra incapacidade que o homem moderno experimenta: compreender e julgar o mundo, ou seja, elaborar significados e julgamentos para aquilo que ele faz e sofre no mundo. A obra arendtiana vive oscilando entre a questão sobre “o que estamos fazendo?” ou sobre “o que o homem faz quando está ativo?” e a interrogação sobre “o que fazemos quando pensamos?” e sobre a relevância do juízo para o mundo comum e humano. Esta distinção fundamental entre pensamento e ação reflete a dupla preocupação que atravessa a obra de Arendt, qual seja: reconsiderar a dignidade da ação no conjunto da vida ativa e a capacidade de pensar e julgar no conjunto da vida espiritual, a fim de renovar as bases filosóficas sobre as quais a política esteve fundada, reinventando ambas: política e filosofia.

» Editora PUC-Rio: Como Arendt pensava e se relacionava com seu próprio tempo?

Rodrigo Ribeiro: A obra de Arendt nos dá um testemunho teórico de que as condições históricas do pensamento contemporâneo estruturam-se em torno de uma dinâmica entre o passado e o futuro, que insere a época presente no desafio de uma perda da tradição. Somente no século XX o homem moderno experimentou viver em um mundo no qual as bases da tradição política e espiritual ocidental não são capazes de formular as questões adequadas para as suas circunstâncias e, menos ainda, conceder as respostas às suas perplexidades. Foi o totalitarismo que desafiou a tradição filosófica e a própria imagem tradicional do pensamento enquanto “espaço interior onde o eu se abriga do mundo”. É por isso que foi com os olhos do presente e orientada por problemas atuais que a história e o mundo se tornaram significativos para o pensamento arendtiano. Arendt buscou modos de problematizar o presente, assumindo uma relação transformadora com o passado que rompe com as continuidades da tradição. Por isso Arendt pôs como epígrafe de Origens do Totalitarismo a frase de Jaspers: “Não almejar nem os que passaram nem os que virão. Importa ser de seu próprio tempo”.

» Editora PUC-Rio: Como Arendt relacionou a ascensão de regimes políticos totalitários à crise da sociedade moderna do século XX?

Rodrigo Ribeiro: O totalitarismo precisa ser entendido como um evento político intrinsecamente moderno, resultante de certos aspectos e elementos assentados em uma série de condições históricas e políticas contemporâneas que tornaram possível o projeto de fabricação planejada de uma sociedade purificada e homogênea através da conjugação inédita de terror e ideologia, ciência e tecnologia, irreflexão e burocracia. As organizações totalitárias das massas desoladas manifestam uma crise que, desde o início do século XX, é de origem e natureza política, pois só foram possíveis a partir do pano de fundo do colapso do mundo cada vez mais radical dentro do qual se desenvolveu o mundo moderno. Esse colapso não foi resultado direto da nova forma totalitária de governo, mas o totalitarismo, tanto na forma de movimento quanto de regime, foi o mais apto a tirar proveito desta atmosfera política e social. O totalitarismo foi, assim, um fenômeno moderno, isto é, um fenômeno gestado e posto em prática em certo momento de nossa civilização, sendo por isso a expressão de uma profunda crise que nasce do próprio processo histórico da cultura ocidental. Isso não significa, de modo algum, que o totalitarismo é um efeito necessário e direto desse colapso. Nem o totalitarismo é a causa do colapso do mundo, nem pode ser concebido como um efeito necessário desse colapso. Em Origens do Totalitarismo não encontramos uma análise genética de causas que necessariamente produziram o evento totalitário, mas a formulação do colapso do mundo como a experiência fundamental cujos elementos constitutivos foram súbita e imprevisivelmente cristalizados numa nova forma de governo que desafiou nossas categorias usuais de compreensão e colocou o presente em conflito com a tradição. Os elementos de que se compõe o colapso do mundo não são uma sequência ordenada de causas necessárias, pois, entregues a si mesmos, esses elementos ainda não são “origens”. As “origens do totalitarismo” só se tornaram origens de um evento futuro depois de irrompido, o próprio acontecimento totalitário no presente. Foi, enfim, o advento de algo suficientemente novo e sem precedentes na história ocidental que acabou por iluminar o nosso passado e pôr em crise o nosso presente. Recuperar as origens do totalitarismo significa, portanto, uma rememoração ativa que transforma o próprio presente por meio da renovação da sua relação com o passado.

» Editora PUC-Rio: Qual é a influência do pensamento de Heidegger na obra de Arendt?

Rodrigo Ribeiro: Sabemos que Arendt foi aluna e também manteve um oculto, intenso e conturbado caso amoroso com Heidegger. As reflexões de Heidegger sobre o conceito existencial e hermenêutico do mundo, sobre o projeto ontológico condutor da metafísica e o seu diagnóstico da modernidade bem como da consumação da “metafísica da subjetividade” no universo da técnica moderna, estão muito presentes na obra de Hannah Arendt, ainda que não sejam explicitamente mencionadas ou analisadas. Creio que ela reflete a partir destes instrumentos de análise oferecidos por Heidegger e sobre as suas consequências para instauração e manutenção do mundo em seu caráter comum e humano. Mas isso não impede que ela mantenha um distanciamento crítico em relação a Heidegger, pois ele próprio foi, sobretudo em seu curto período de engajamento político, insensível às implicações e consequências políticas da era da técnica; talvez porque ele, tal como a tradição filosófica em geral, não tenha pensado a dignidade própria do lado público do mundo, instaurado pela ação e pelo discurso de homens plurais. Portanto, é preciso observar com cuidado que os conceitos de “mundo” e “ser-no-mundo” em Heidegger e o conceito de mundo e “ser-do-mundo” de Hannah Arendt não são a mesma coisa e não correspondem à mesma preocupação teórica.

» Editora PUC-Rio: Qual a importância do pensamento de Arendt no Brasil, nos tempos atuais?

Rodrigo Ribeiro: Os escritos de Hannah Arendt e as interpretações de sua obra foram se inserindo no contexto da cultura e da pesquisa brasileiras no início dos anos 1970, e de lá para cá têm conquistado uma importância cada vez maior. Atualmente quase todos os seus livros foram vertidos para o português. Sua obra tem sido cada vez mais estudada nas mais diferentes áreas do saber, tais como: psicologia, história, sociologia, ciência política e, inclusive, nos últimos anos tem aumentado consideravelmente o interesse no âmbito das pesquisas em filosofia.

» Editora PUC-Rio: Qual é o principal legado da pensadora, na sua opinião?

Rodrigo Ribeiro: O maior legado da reflexão de Hannah Arendt reside no esforço de compreensão da experiência de “ser-do-mundo” ou um empenho por elucidar o modo como a existência humana só realiza a plenitude do seu vigor por meio de um cultivado amor pelo mundo (amor mundi). E com tal propósito, essas reflexões nos revelam também o quanto o mundo comum e humano não é algo dado ao homem de uma vez por todas e de modo espontâneo, pois pode ser perdido, alienado e degradado, demandando, portanto, ser construído, reconhecido, mantido e garantido por meio das intervenções e interações humanas. Nem sempre nossos engajamentos com as condições mundanas da existência humana estão norteadas por um genuíno amor ao mundo. Assim, a presença do homem no mundo não é simplesmente dada e entregue pelo funcionamento puramente automático da vida natural que, velada em si mesma e para si mesma, absorve toda a vida individual na vida da espécie. Indo sempre em direção à morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e para a destruição, se não fosse a capacidade humana de interromper o processo contínuo e circular da natureza por meio de feitos, palavras e obras que preservem o mundo humano enquanto abrigo de seres mortais.

Um legado importante dentro desse contexto é o diagnóstico da insuficiência do liberalismo e do esquerdismo. Por exemplo, Arendt jamais pretendeu dizer que totalitarismo e democracia liberal são o mesmo, mas a autora procurou enfatizar que se o totalitarismo aniquilou a liberdade, cujo domínio de experiência é a ação política, o esquerdismo e as democracias liberais representativas acabam promovendo um obscurecimento do sentido político da liberdade e da liberdade como o sentido da política. Restringindo-me às sociedades liberais, podemos perceber o quanto há nelas uma redução da liberdade política ao mínimo instante do voto. A liberdade está separada da ação política, pois esta tem apenas a função de garantir a segurança e arbitrar os conflitos da sociedade civil. A verdadeira liberdade não reside na política, mas em poder se libertar da política, uma vez que toda ação política está a serviço das garantias que conferem ao indivíduo a liberdade econômica (trabalho, propriedade e sobrevivência) e a liberdade de consciência. Essa clássica posição liberal vincula “liberdade” com “garantia de segurança aos indivíduos”, atribuindo à política esse dever e liberando os homens para as atividades realizadas fora do âmbito político. Em seu ensaio “Sobre a Revolução”, Arendt considera que se confundiu constantemente liberdade com liberação, mas se estar liberado da opressão é condição para o exercício da liberdade, não constitui sua condição suficiente. Não basta estarmos libertos para sermos politicamente livres. Arendt considera que os homens são livres enquanto agem, nem antes nem depois; pois ser livre e agir são uma só coisa.


Publicado em: 02/09/2015





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