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07 Nunca tive boa memória, sempre sofri essa desvantagem; mas talvez seja um modo de recordar apenas o que se deve, talvez a maior coisa que nos aconteceu na vida, a que tem algum significado profundo, a que foi decisiva – para o bem e para o mal – nesta complexa, contraditória e inexplicável viagem rumo à morte que é a vida de toda pessoa. (...) Na cidadezinha em que nasci, tínhamos o costume de, antes de deitar, pedir que nos acordassem dizendo: “Recuérdenme a las seis”, acordem-me às seis. Sempre me espantou aquela relação que se estabelecia entre a memória e a continuação da existência.
(Ernesto Sabato)

Memória em foco

Nossa primeira indagação é a seguinte: “Afinal, o que é memória?”.07

O primeiro desafio é definir o conceito de memória, a partir de vivências práticas, e analisar, junto com o grupo, as contribuições que se a presentam no diálogo sobre este tema. Antes de oferecermos definições prontas, é interessante sabermos o que os participantes pensam. As definições dos participantes devem ser anotadas, para serem retomadas e discutidas ao longo do encontro.

Cada participante é convidado a expressar suas convicções sobre o lugar da memória em sua vida e dizer o que pensa sobre este tema.

O que é memória?

Ana: Memória é o que você lembra do passado, lembra aquilo que foi bom na sua vida e daquilo que foi ruim.

Marta: Memória pode ser também coisa ruim, que ela não queira falar pra ninguém, mas é uma lembrança, memória. Eu acho que memória, pra mim , no meu ver, memória é o que eu vou querer que seja lembrado pra sempre, isso é uma memória. Sendo boa ou ruim, se eu falar, vai ser lembrada pra sempre. A minha vai passar pra ela, a dela vai passar pra ela... isso, pra mim, é memória.

Vânia: Uma caixinha. Memória, uma caixinha de surpresas guardada, surpresas e lembranças guardadas no nosso cérebro. A gente quer lembrar de alguma coisa, a gente vai lá mexer nessa caixinha e traz à tona as lembranças passadas.

Com base no diálogo sobre o tema da memória, surgem novas perguntas:

Como devo contar a minha história? O que dizer para o outro? Para quem contar minhas memórias? Será que aquele que me escuta tem interesse em me ouvir? Por que é importante contar nossas histórias?

Na discussão sobre o tema da memória, aquele que narra sua história eventualmente se dá conta de que poderá, num outro momento, ocupar o lugar daquele que escuta a história do outro. Narrar e ouvir nossas histórias supõe uma relação de reciprocidade.

Sou capaz de ouvir a história do outro com atenção? O que é uma escuta verdadeira? Sou capaz de suportar os silêncios do meu interlocutor? O que é ser testemunha das histórias orais daqueles que são os meus próximos, ou seja, pessoas significativas para nós e para as quais também somos importantes? O que é ser um bom ouvinte?08

08 Não existe, entre os dois pólos da memória individual e da memória coletiva, um plano intermediário de referência no qual se operam concretamente as trocas entre a memória viva das pessoas individuais e a memória pública das comunidades às quais pertencemos? Esse plano é o da relação com os próximos, a quem temos o direito de atribuir uma memória de um tipo distinto. Os próximos, essas pessoas que contam para nós e para as quais contamos, estão situados numa faixa de variação das distâncias na relação entre o si e os outros... Entrementes, meus próximos são aqueles que me aprovam por existir e cuja existência aprovo na reciprocidade e na igualdade de estima.
(Paul Ricoeur)

Estes questionamentos nos fazem refletir acerca do lugar social que ocupamos no trabalho de escuta da memória. A escuta da memória é um encontro entre duas ou mais pessoas que querem conversar sobre suas histórias de vida. O interesse e o respeito mútuo é o que move o encontro entre pessoas em torno de suas lembranças. Cada história de vida é uma viagem para dentro de si mesmo, uma viagem que só se completa com a escuta do outro. Se envolver com a história do outro, como se fosse parte de sua própria história - eis o caminho para se alcançar uma escuta verdadeira.

Entendemos que memória é a lembrança de um acontecimento no presente de algo vivido no passado. São as recordações dos ensinamentos aprendidos, dos lugares por onde se passou ou morou, das pessoas que se conheceu e amou, das experiências difíceis que se ultrapassou. Entretanto, nem sempre é possível lembrar. Lembrar e esquecer são faces de uma mesma história. Por isso, diz-se que a nossa memória é seletiva. Escolhemos alguns fatos para serem lembrados e outros para ficarem guardados em algum lugar da memória. Os que ficam guardados ou esquecidos podem ser evocados ou não, uma vez mais, dependendo de certas circunstâncias geradas ao longo da vida.

Chamamos de memória involuntária, acontecimentos que surgem repentinamente, a partir de circunstâncias do cotidiano que nos fazem lembrar algo ou alguém, na velocidade de um relâmpago, sem que haja intenção por parte daquele que lembra. Por exemplo, quando sinto o cheiro de um determinado perfume, pode ser que esse odor caminhe pelos labirintos de minha memória e me traga uma lembrança que, até aquele momento, estava adormecida. Sinto o perfume e me lembro de alguém especial, uma memória que me assalta sem que eu estivesse à sua procura.

Em contrapartida, há momentos em que batalhamos para evocar a lembrança de algo ou de alguém sem sucesso imediato. Nestes casos, o esforço de memória exige um trabalho de pensamento, retornar sempre aos mesmos fatos em busca de uma imagem perdida para dar contorno a uma história que se quer lembrar. O desejo de memória é alimentado pelo que chamamos de memória voluntária. A memória voluntária se fundamenta no desejo de reconstruir o passado a partir de um intenso trabalho de rememoração no presente, que traz à tona imagens de objetos, personagens, lugares e acontecimentos. A narrativa é o elo que organiza o pensamento de quem deseja relembrar determinados episódios e imagens do passado.

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