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46 Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar a cabeça, o rosto, a expressão do rosto -, o mundo ao qual ele dá as costas, toda uma série de objetos e de relações que, em função da respectiva relação em que podemos situar-nos, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele. Quando estamos nos olhando, dois mundos diferentes se refletem na pupila dos nossos olhos.
(Mikhail Bakhtin)

No trabalho de escuta em grupo, memória individual e memória coletiva se tecem e entretecem. Ao contar a sua história pessoal, os narradores vão acendendo luzes nas memórias dos outros e o desejo de narrar vai tomando força: “O que você disse, me lembrou um dia em que...”. Uma história vai puxando outra, outra e mais outra. Ali se percebe como as memórias - que pareciam pessoais, individuais - atravessam e marcam coletivamente a vida de outras pessoas, ainda que cada indivíduo experimente a vida de um lugar inteiramente único. É escutando a experiência alheia que vou criando sentidos para minha própria história. Estar com o outro me altera e gera um movimento de estranhamento e identificação: saio do encontro conhecendo a história do outro, mas também olhando de um modo diferente para mim mesmo.46

Na prática de escuta coletiva, pontos de vista diferentes sobre uma mesma história vivida podem aparecer. Mas isso não é um problema, pois esses diversos modos de ver o passado atestam como cada um de nós, de forma muito particular, experimenta e guarda os fatos da vida. Não existe a versão mais verdadeira ou fiel: todos os pontos de vista são bem-vindos, são fios do passado que vão tecendo uma história mais ampla. O escutador será a pessoa que irá orquestrar a conversa, dando a palavra a quem quiser falar, garantindo que todos possam narrar e serem ouvidos.

Num grupo composto por pessoas de idades muito diferentes, por exemplo, o bate-papo coletivo pode ser um espaço onde as gerações poderão se encontrar, se olhar, se ouvir. As histórias são compartilhadas, não sem algum estranhamento ou surpresa e, assim, a experiência de distanciamento temporal vai ganhando outros contornos.47

47 Este abismo entre as gerações revela nossa solidão cultivada na insensibilidade com que facilmente descartamos o “outro” de dentro de nós. A questão do olhar se torna fundamental para retomarmos o tema da alteridade: o olhar convoca nossa relação ética na relação com o outro.
(Solange Jobim e Souza)

Outra questão importante a ser discutida diz respeito ao sigilo. Quais histórias posso contar frente a um grupo específico de pessoas? Em primeiro lugar, se a escuta de memórias for acontecer em grupo, todos os participantes devem concordar em narrar neste contexto. É importante, ainda, abrir espaço para aqueles que preferirem contar suas histórias individualmente, caso se sintam mais à vontade.

Tanto em um encontro individual, quanto em um encontro com mais interlocutores, o escutador deve deixar claro para todos que, na escuta de memórias, os relatos priorizados serão os que se referem àquelas experiências de vida que podem ser compartilhadas. Assim, mesmo que nosso interlocutor sinta desejo, confiança e liberdade para contar episódios muito íntimos, é importante esclarecer que não é um espaço onde serão privilegiados conteúdos sigilosos ou segredos. Caso esses conteúdos surjam, cabe ouvi-los com respeito e, posteriormente, refletir e selecionar o que deve ou não ser divulgado. Com esse esclarecimento, as pessoas já serão estimuladas a selecionar aquilo que desejam dividir com os outros.

A escuta de memórias não é uma escuta clínica ou terapêutica, que trabalha prioritariamente com conteúdos que, a princípio, não se tem a intenção de divulgar. O trabalho com a memória é uma prática onde as histórias de vida de pessoas comuns, seus saberes e fazeres, e os ensinamentos vindos de suas experiências são vistos como patrimônio coletivo. Pode acontecer de o escutador sentir curiosidade de conhecer determinadas histórias mais íntimas da vida de uma pessoa. Contudo, não deverá esquecer o objetivo de seu trabalho e, ao invés de ir à cata dessas histórias, deixará seu interlocutor trazer o conteúdo que desejar.

Mas, se há espaço para o trabalho de escuta com mais de uma pessoa, é possível desenvolver um bate-papo com mais de um escutador? Se o escutador desejar e se for possível ter um companheiro para o trabalho, não há problema algum, desde que seu interlocutor também esteja a favor. Ter a companhia de outra pessoa pode ser interessante, inclusive na situação de o escutador estar um pouco inseguro para realizar uma conversa. O mais importante é que os escutadores conversem entre si antes do trabalho, para definir alguns procedimentos, de modo que busquem sintonia no trabalho que irão realizar: como será feita a escuta, onde será o bate-papo, quem inicia a conversa, como será registrada e por quem.

No entanto, é aconselhável que o número de escutadores não exceda muito o número de narradores, de modo que haja certo equilíbrio. Após o bate-papo, se for possível, pode ser bastante produtivo que os escutadores conversem entre si, tecendo críticas construtivas uns aos outros, levantando pontos positivos e negativos, com o objetivo de melhorar, cada vez mais, o trabalho de escuta.

Outro aspecto importante a ser discutido é o local onde se dará o encontro. A pessoa que irá narrar sua história é quem deve escolher o espaço com o qual mais se identifica e onde se sente mais segura para falar, que pode ou não ser a sua própria casa. O escutador poderá ajudar, sugerindo espaços que considerar convenientes, mas seu interlocutor deve ser respeitado na decisão que tomar.

48 De bom grado diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes.
(Maurice Halbwachs)

Incluir nossos interlocutores na escolha desses aspectos (quem estará na conversa e onde irá acontecer) é um primeiro passo para o estabelecimento da confiança, essencial ao trabalho de escuta. Além disso, acreditamos que o discurso é atravessado e modificado pelo contexto. Por exemplo, se o bate-papo ocorrer num espaço público, onde muitas pessoas estejam passando, quem narra irá apresentar sua história de uma forma. Se acontecer na sua residência, sem a presença de outras pessoas, poderá contar de outra maneira. Isso porque a pessoa vai vendo os limites do que vai sendo possível ser dito, por conta do contexto. Portanto, é importante que o escutador fique atento a estes aspectos, negociando com seu interlocutor as melhores condições para o trabalho.48

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