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55 Do campo ao texto, do texto ao campo, a relação com o outro se coloca sempre como problema central. Entretanto, essas passagens não se dão de forma contínua. O outro, co-presente na situação de campo, torna-se ausente na cena da escrita e essa mudança nos lugares enunciativos instaura condições específicas para o trabalho do texto.
(Marília Amorim)
Encerrado o momento do bate-papo, o trabalho do escutador ainda não chegou ao fim. A próxima etapa diz respeito ao modo como irá organizar as histórias de vida que chegaram até seus ouvidos. A escrita é uma importante forma de registro dos conteúdos de memória. É uma ferramenta que ajuda a proteger do esquecimento as palavras faladas, que jogadas ao vento, podem se perder. As palavras que vivem agarradas à folha de papel também ajudam a guardar a vida de uma pessoa, mesmo quando ela já não se encontra mais entre nós: a pessoa sobrevive, contada nas páginas da memória coletiva. Sobre a questão da escrita, as escutadoras teceram alguns comentários:55
Marta (escutadora): Vou fazer minha memória. Escreve um livro todinho, todo mundo que vai ler, vai entender, vai passar anunciando que a minha memória vai tá aí pra sempre.
Cíntia (NIMESC): Ah, mas, então, você tocou numa coisa importante. Por que o “pra sempre”? Por que é importante ficar pra sempre?
Marta (escutadora): Porque, se eu quis passar, de ruim ou de bom, vai ficar ali. Igual, que nem a Fabiana vai me entrevistar, vou contar a minha vida todinha. Ela vai ter que falar tudo o que eu falei, não botar palavras na minha boca. Ela vai contar tudo o que falei. Ela vai contar num vídeo, num livro... mesmo que eu não esteja presente.
Débora (escutadora): Então, no caso, pode ser troca de experiência?... tipo, uma experiência que ela passou e eu não passei. Mas o que li da vida tá fazendo uma diferença pra mim.
56 A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu; e ela não perde o que merece ser salvo.
(Eduardo Galeano)
Caso o escutador não tenha usado o gravador de voz e tenha anotado apenas alguns trechos importantes durante a conversa, é aconselhável que escreva a história tão logo seja possível. Assim, poderá aproveitá-la ainda bastante viva em sua cabeça, para fazer um relato escrito mais próximo daquilo que foi dito. Mas, alguns depoimentos escutados serão esquecidos no momento da escrita e isso não é necessariamente um problema. Ao escrever, o escutador tentará recuperar o passado da conversa no presente da escrita, mesmo que isso não seja totalmente possível. Porém, o mais importante é o escutador estar muito atento e interessado no momento da escuta. Desse modo, o que ficar de mais importante da história será lembrado.56
É importante que o escutador se certifique de que registrou o nome completo da pessoa escutada e, se a pessoa preferir, também seu apelido, além da idade. Esses dados são importantes para a identificação da pessoa. No mais, não há muitas regras para o momento da escrita. O escutador-escritor deverá pensar quais histórias mais o impressionaram, mais o emocionaram, mais o surpreenderam. Deverá, ainda, tentar lembrar quais histórias foram mais significativas para seus narradores, ou seja, aquelas que, ao serem narradas, vieram carregadas de muito afeto. Os relatos que mais tocam aquele que narra e aquele que escuta são os que devemos selecionar para colocar no papel.57
57 Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las.
(Walter Benjamin)
Depois de selecionar as histórias, o escutador deverá pensar no modo como irá apresentá-las ao escrever. Cada escutador tem um modo de expressar suas ideias no papel, cada escutador tem seu jeito de escrever! Portanto, não há nenhuma regra que defina como deve ser a escrita. A identidade do escutador-escritor é bastante particular e vai sendo construída ao longo do trabalho.
As escutadoras do MUF participaram de um exercício onde, depois de assistirem em vídeo a história de Anna Paula, foram convidadas a escrever sobre sua história. Vejamos abaixo alguns textos que foram produzidos por elas:
Fabiana: Eu acho que a entrevista da Ana tem muitos pontos importantes, a começar pelo parto dos gêmeos, onde ela teve uma rejeição das crianças devido a uma depressão pós-parto, que, na minha opinião, foi causada pela visita do pai das crianças, que a rejeitou. Ele já estava com um relacionamento com outra pessoa, que, inclusive, o acompanhou na visita dos gêmeos na maternidade. Depois disso, quando a avó dela faz com que ela perceba que os filhos são dela e ela tem que cuidar, ela passa a dar tudo de si para criar os filhos e ajudar a avó. E isso tudo foi muito bom para o lado dela profissional, pois com todo o esforço para criar os filhos, ela aproveitou as oportunidades que lhe apareceram ao longo dos anos e, graças a seu esforço e perseverança, hoje em dia ela tem várias profissões e não para de lutar, mesmo com obstáculos que a vida lhe impôs, ou impõe. Ela se mostra uma pessoa bem feliz e satisfeita com a vida que tem. E principalmente orgulhosa dos seus filhos, que, diante de toda a luta, se tornaram homens de bem, destacados na profissão que escolheram.
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