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Com as histórias em mãos, os escutadores poderão fazer um livro contando as memórias de um determinado grupo de pessoas. Poderão, ainda, pensar numa exposição onde as imagens fotográficas dos narradores sejam apresentadas junto às suas histórias. Essa exposição pode, inclusive, ser itinerante. Assim, públicos diferentes poderão entrar em contato com o universo das memórias narradas.

60 Guardar
Antônio Cícero

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
Por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

Há, ainda, a opção de se produzir um documentário das histórias de vida, caso as conversas tenham sido gravadas em vídeo. Neste caso, a questão do sigilo é trabalhada de forma um pouco diferente. Quando aceitou participar de uma conversa com a câmera, a pessoa escutada sabia que não haveria a possibilidade de esconder sua identidade, pois sua imagem seria veiculada. Ainda assim, podemos preservar os narradores de exposições indevidas no momento em que fazemos a edição das histórias que irão entrar no vídeo.

Seja qual for a forma de divulgação das histórias de vida, é de fundamental importância que, antes de qualquer publicação, aquele que narra seja convidado a conhecer como sua história será materializada e publicada. Faz parte da ética do escutador incluir o ponto de vista daquele que narrou sua história, respeitando sua opinião, pois, afinal, é a sua história que está em jogo. O modo como deseja que sua vida seja apresentada ao mundo deve ser respeitado.

Mas é igualmente importante que as histórias, depois de escutadas e transformadas em produtos de exposição/divulgação, ganhem o mundo e sejam conhecidas e (re)conhecidas. Uma h istória guardada permanece a mesma e não se enriquece e nem enriquece os outros. As memórias servem para transformar o presente e abrir a oportunidade para nascerem outros futuros possíveis. Uma história de vida não floresce na solidão, mas vai ficando mais bela, profunda e valorosa à medida que é compartilhada.

Esperamos que este guia tenha apontado para alguns dos desafios presentes no trabalho com a memória. Mas muitos outros irão surgir, pois a memória é viva e o encontro entre as pessoas é sempre aberto ao novo e à surpresa. Vá em frente! Há muitas histórias a escutar! Para isso, precisamos de ouvidos atentos e preparados para receber com respeito e responsabilidade as histórias de vida.60

Contando histórias

Vamos conhecer uma parte da história de vida de Selma e Rosimary:

Selma: Trabalhei, trabalhei, trabalhei durante os dois primeiros anos de separada eu trabalhei, de segunda a domingo, de primeiro de janeiro a trinta e um de dezembro, sem nunca pensar assim, amanhã é domingo e feriado. Não! Pra dar aos meus filhos o que eu não tive e a presença. Nunca ninguém levou meus filhos ao médico! Ah, eu vou levar porque ela não... era médico, pra escola, era a água que a gente tinha, né? A gente tinha água assim, só sabe Deus, duas horas da manhã. Às vezes, chegava em casa meia noite, quando dava duas, três horas da manhã, a água na bica. Aí levantava, tinha um barril. Eram três crianças, nunca andaram sujo, nunca andaram descalço, nunca andaram com fome, nunca deixei faltar um pão! Eu nunca, nunca, nunca não me casei de novo. Aí, passei a viver, os meus filhos foram crescendo, foram e eu fui ensinando o que era a vida, ensinei os meus filhos: "Olha só, a filha dos outros, ela é filha, ela tem um pai, você não é o pai dela!". Também a minha filha, digo: "Também você não é filha de ninguém, você é minha filha, tá?". Todo mundo começou a trabalhar cedo na minha casa, porque foi o que sempre eles me viram. Às vezes, eles me viam final de semana, sábado e domingo eu trabalhava fora, de segunda a sexta, sábado e domingo, eu fazia unha, hoje eu tenho que usar óculos, porque a minha vista acabou. Fiz muita unha com a vela acesa do lado, pra poder não ter que pedir, não deixar faltar com três crianças dentro de casa. Dia de sábado e domingo, eu comprava trinta pãezinhos, eles comiam quinze no café da manhã, eu nunca disse não coma, não é pra comer. Graças a Deus, eu fui uma mãe, se hoje com sessenta e um anos eu morresse, agora eu tenho certeza do meu dever cumprido com todos eles. Meu filho caçula mora na Polônia, tem um casal de filhos. Eduquei todo mundo, fui uma mãe rigorosa, deixava o que fazer e era pra fazer. Eu sempre fui, fui pai e mãe. Sempre criei aqui nessa comunidade, que eu nasci e me criei, passei uma parte fora, mas minha educação, minha base saiu daqui de dentro, da minha casa. Então, eu posso hoje me orgulhar de dizer: "Eu criei três filhos, três cidadãos, criei filhos guerreiros!"

Vânia (escutadora): Naquele tempo lá atrás, de muito sofrimento, você tinha vergonha de falar que morava no morro do Cantagalo?

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