2

O tempo é um fator fundamental no processo de rememoração. A memória é constituída por algumas imagens nítidas e facilmente recapituladas, mas também por imagens mais efêmeras, que vivem como sombras fugidias. Assim, quem narra deve ter o tempo que precisar para se exercitar nesta seara de imagens e o escutador deve, sem pressa, estar disponível para acompanhar este encontro de quem narra consigo mesmo, com seu grupo e com sua história.

30 Se a memória é não passividade, mas forma organizadora, é importante respeitar os caminhos que os recordadores vão abrindo na sua evocação porque são o mapa afetivo e intelectual da sua experiência e da experiência de seu grupo...
(Ecléa Bosi)

Mas, por que dizemos escuta de memória e não entrevista de memória? Mais ainda: por que utilizamos o termo escutador e não entrevistador? O uso dessas palavras não é por acaso. Em primeiro lugar, preferimos pensar numa prática de trabalho um pouco diferente do que o senso comum compreende como sendo uma entrevista. Entrevistar, num sentido mais amplo, refere-se ao encontro entre duas pessoas, onde uma faz uma série de perguntas já previamente elaboradas e a outra as responde. Essa forma de agir produz uma situação onde quem pergunta define qual será o caminho percorrido por quem responde, ainda que haja uma possibilidade de o entrevistado fazer alguns desvios no roteiro.30

Entendemos que o trabalho com a memória é uma reconstrução dos fatos passados no presente. Assim, o trabalho com a memória se fundamenta nos registros afetivos que compõe a história de vida de uma pessoa. Logo, não busca narrativas que apresentem literalmente os acontecimentos de outrora, mas se interessa por compreender como nosso interlocutor, em contato com o que viveu, faz uma leitura de sua trajetória de vida e a apresenta para o mundo. Nesta qualidade de trabalho, o objetivo maior fundamenta-se na importância de permitir que aquele que narra seja protagonista da imagem que quer deixar de si, para isso, deve sentir-se livre para dizer o que quiser e da forma que preferir.

É por isso que ao invés de falarmos entrevista de memória, preferimos chamar de bate-papo ou conversa. Num diálogo, não há uma lista de questões a serem respondidas, mas os indivíduos possuem liberdade para falar sobre o assunto que quiserem. No trabalho com a memória, contudo, não se trata de um diálogo qualquer, mas de um encontro onde a cena está montada para que a história de uma das pessoas seja apresentada. Por isso mesmo, preferimos chamar de escutador (e não entrevistador) aquele que se disponibiliza a emprestar os ouvidos e ser testemunho da história de alguém.

31 E aí tem todo um processo em que você tenta se colocar no lugar do outro. Embora (isto) seja impossível. O que interessa são as razões do outro, não as suas. Interessa a ficção dos outros, não as minhas, as minhas vêm depois da dos outros. Os outros falam sobre a vida, só ficção de certa forma. São ficções que têm um teor ficcional muito grande. Mas me interessa a ficção deles, e entender de onde a pessoa fala.
(Eduardo Coutinho)

Nessa forma de trabalho, o roteiro de perguntas deixa de ser uma ferramenta essencial, pois quem escolhe o que deve ser dito é quem narra, com o auxílio de quem escuta. Compreendemos que, se cada pessoa e cada história são únicas, também devem ser singulares as questões que surgirão no momento de encontro entre o escutador e seu interlocutor. Num trabalho sem roteiro, o escutador inicia a conversa permitindo que aquele que conta sua história vá desenvolvendo espontaneamente a narrativa que desejar. Mas você deve estar se perguntando: ainda que não haja um roteiro pré-definido, como posso estimular meu interlocutor a começar a falar?31

Falar de si em um momento onde vivemos a experiência do isolamento social e da desvalorização da escuta não é tarefa simples. Minha história serve para quê? Por que alguém se interessaria por ela? O trabalho com a memória passa por um momento inicial onde o escutador demonstra de que modo uma história de vida comum pode ser importante para a identidade social de um lugar, para acolher a tradição e para a compreensão do presente. As experiências vividas no passado lançam luz no caminho de agora, ampliam a possibilidade de se entender a cena atual a partir dos bastidores de antes.

Feito este esclarecimento inicial ao interlocutor, surge novo questionamento: que perguntas seriam feitas para despertar o desejo de falar? Muitas são as questões possíveis e, à medida que o tempo passa, o escutador vai percebendo com qual delas se sente mais à vontade para trabalhar. Aqui, listamos algumas possibilidades, mas muitas outras podem ser utilizadas: “Quais são os acontecimentos de sua vida que você considera importante narrar?”; “Que história você gostaria de me contar?”; “O que é que te motivou a vir até aqui?”; “Quem é você?”; “Conte-me a sua história”. Uma pergunta inicial não tão diretiva permite que nosso interlocutor comece a fazer uma seleção muito particular de sua história para nos contar.

Preferimos trabalhar sem ter que seguir um roteiro fechado, porque, assim, além de respeitar o desejo do interlocutor, questões que nunca havíamos pensado podem aparecer naquele contexto específico. Dessa forma, o que surge será sempre da ordem do imprevisível, ou seja, cada encontro será uma surpresa.

A ausência de um roteiro fechado não significa que em um bate-papo seja desnecessário fazer algumas perguntas. O escutador elabora questões ao longo da narrativa, mas são perguntas que lhe ocorrem a partir do momento que vai escutando as histórias. Isso quer dizer que cada nova pergunta formulada depende do que a resposta anterior provocou no escutador. As perguntas devem ser construídas entrelaçadas na conversa e de acordo com a relação criada com o interlocutor. O método de trabalho do escutador não existe antes do bate-papo, mas passa a existir durante este encontro, é um método que se constrói ao vivo.

2