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Comentário

Não é uma tarefa simples narrar algumas histórias. Portanto, nosso interlocutor deve ter um ambiente favorável para se aventurar em sua própria memória, sendo respeitado quando quiser calar. No caso de Sebastiana, inicialmente houve certa resistência em falar de uma experiência difícil por ela vivida, mas, com o desenrolar da conversa, sentiu-se mais confiante e pôde seguir no seu relato.

3.3 Especificidades do trabalho de escuta de memória: bate-papo com pessoas conhecidas e o desejo de dar conselhos

3.3.1 Bate-papo com pessoas conhecidas

39 A memória opera com grande liberdade escolhendo acontecimentos no espaço e no tempo, não arbitrariamente mas porque se relacionam através de índices comuns. São configurações mais intensas quando sobre elas incide o brilho de um significado coletivo.
(Ecléa Bosi)

O trabalho do escutador dá oportunidade, àquele que narra, de reencontrar seu passado, mas também o escutador ganha a possibilidade de conhecer o modo como as pessoas experimentaram e lidaram com as situações da vida, além de entrar em contato com a história de um grupo, com seus saberes e fazeres. Esse encontro ganha um sentido diferente quando o escutador tem pessoas próximas como interlocutores: seja de sua própria família, amigos ou da comunidade em que vive. Assim, o escutador entrará em contato com histórias de vida que tocam a sua própria história pessoal. São narrativas que revelam o outro, mas que, igualmente, revelam ele mesmo.39

Neste tipo de encontro, o escutador será afetado de uma forma um pouco diferente pelas histórias que irá ouvir, porque, em algum nível, lhes dizem respeito, pois delas compartilha. Irá perceber que ignorava muitos dos relatos, que desconhecia pessoas que julgava conhecer muito bem. Possivelmente, o escutador irá se surpreender, quando puder conhecer de novo e re-conhecer pessoas conhecidas. Nesta situação, irá descortinar um passado que também lhe pertence.40

40 Não tem impulso maior no ser humano do que ser reconhecido e escutado.
(Eduardo Coutinho)

Numa situação de conversa com pessoas muito próximas, o escutador deverá estar atento a alguns detalhes. Quando parte da história da pessoa a ser escutada é conhecida pelo escutador, este tende a fazer uma imagem do que seria importante ser dito. É natural que o escutador crie expectativas em relação àquilo que será expresso. Isso porque, do lugar que ocupa, tende a fazer uma seleção daquilo que considera relevante na vida do outro, daquilo que acha que melhor o representa.

Entretanto, aquele que narra pode deixar de contar uma história que, para o escutador, é de fundamental importância. Ou, ainda, pode contar uma história conhecida do escutador, mas trazendo detalhes que sejam diferentes daqueles que o escutador tinha na memória. Frente a tais situações, o escutador pode sentir o desejo de mudar o rumo da conversa, tentando encaminhá-la para determinados assuntos. Ou, ainda, pode sentir a necessidade de “ajudar” aquele que narra, corrigindo-o ou mesmo duvidando de algo que foi dito, colocando, assim, seu interlocutor em prova.

Numa situação de bate-papo com pessoas conhecidas, o escutador deve ficar atento, pois esse movimento de “consertar” as histórias que ouvimos é algo que pode caber numa conversa informal, mas não no trabalho de escuta de memórias. O importante é o escutador saber trabalhar suas expectativas, de modo que seu interlocutor possa ter espaço para construir uma imagem de si com os elementos que desejar. O escutador será apenas um parceiro cuidadoso nesse trabalho de escavação de memórias e não um avaliador do que está sendo dito. Essa postura é fundamental para a confiança e para a tranquilidade daquele que narra.

O encontro com pessoas conhecidas pode gerar, ainda, sentimentos que não são esperados. As escutadoras do MUF relataram que a relação com alguns interlocutores se modificou, após o bate-papo. Ter contato com a memória de nossos próximos pode ser um canal de (re)aproximação com essas pessoas, onde laços podem ser criados e/ou fortalecidos:

Rita (escutadora): Então, o sofrimento pra ela ficou só na lembrança, né? Porque passou, né? Ela é uma pessoa cristã e passou. Mas, no fundo, doeu... Ela tá superando sobre isso também. Eu converso muito com ela, ainda. Depois disso aí, eu converso muito com ela.

Cíntia (NIMESC): Ah, é? Mudou?

Rita (escutadora): Mudou.

Cíntia (NIMESC): Vocês ficaram mais próximas?

Rita (escutadora): É. Depois dessa entrevista que eu fiz com ela. Tinha amizade com ela, assim, mas não tão profunda.

O trabalho com pessoas conhecidas pode ter, ainda, outros aspectos positivos. Quando se escuta alguém próximo, já há algum nível de intimidade, que pode ajudar no desfecho da conversa (principalmente para os escutadores que se sentem mais tímidos). O mesmo vale para a pessoa que conta a sua história, que pode se sentir mais confortável e confiante por ser ouvida por alguém próximo, situação que, talvez, lhe inspire mais confiança. Mas é claro que isso varia de pessoa para pessoa, de escutador para escutador.

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