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Memória em foco

Nossas memórias nos habitam como cenas que guardam nossas experiências. Quando as narrarmos, desejamos transmitir uma experiência, um legado que apresenta a marca singular de nossa passagem pelo mundo. Portanto, é pela linguagem que podemos socializá-las, compartilhar nossa singularidade. A narrativa oral é um caminho feito por palavras por onde a memória corre de um indivíduo para o outro. A ação de narrar ou contar as histórias é, portanto, a ponte que liga os sujeitos e suas memórias.

28 Enquanto rememoram, os mais velhos tecem uma narrativa e experimentam a alegria de compartilhar sua própria história, que está sempre ligada a uma história maior, o que possibilita ao ouvinte o contato com um outro tempo. Quando encontram uma escuta sensível, essa rememoração lhes dá sentido e engrandece não só a sua vida, mas também a de quem pôde ouvi-la.
(Denise Sampaio Gusmão)

Infelizmente, nos dias atuais, as condições de vida oferecem cada vez menos espaço para o encontro e a troca de experiências entre as pessoas, entre as gerações, entre os indivíduos e sua história. Assim, a escuta atenta, sincera e interessada acaba perdendo espaço. Pouca disponibilidade para se ouvir tem, como efeito, um enfraquecimento do desejo de narrar. Dessa forma, nossa experiência se torna empobrecida, pois deixamos de olhar para nós mesmos e elaborar o que vivenciamos; em contrapartida, também deixamos de escutar a sabedoria que brota das palavras dos outros, sabedoria essa que fortalece nossa capacidade de compreender a vida e a nós mesmos. Sentimos que somos verdadeiramente convidados a partilhar experiências quando percebemos que nossas histórias vibram e fazem sentido não apenas em nós, mas também no interior daquele que nos ouve.28

Na fala de Rosimary, podemos perceber uma crítica neste sentido:

Rosimary: E a gente era feliz. Eu, na minha opinião, a gente era muito mais feliz naquela época do que de agora. Eu acho que a gente era muito mais feliz, com toda a miséria que a gente sentia, a gente era feliz, agora não...

Cíntia (NIMESC): Por quê?

Rosimary: Agora, com a tecnologia, agora só dá dor de cabeça. Cê tá chamando uma pessoa agora só “tá, tum”, no celular. Vai falar com teu filho, teu filho tá toda hora no computador: “– Aguarda aí, espera aí.”. Eu já não aguento esperar. Pra fazer um serviço, tem que esperar. Pra fazer um negócio, tem que esperar. Eu não sei nem mexer nesse computador. Porque eles não querem fazer nada por causa desse computador, desse celular. Outro dia, fui falar com uma pessoa, fulano, aquele negócio do “alkman”, não pode dar o recado: “– Você não me deu o recado.”. “– Como eu vou dar o recado, se você tá com o “alkman” no ouvido e eu tô te gritando?”. Aí, você aprende até falar alto, você não falava alto, você tá aprendendo falar alto por causa deles, porque eles estão tão aéreos com essa tecnologia de agora. Ah, eu hein? Fico nervosa!

Vânia (escutadora): Então, você sente falta de conversar olho a olho, que agora, com a tecnologia aí avançada, as pessoas só ficam no computador. Sente falta disso, de conversar...

Rosimary: Ah, eu sinto. A gente sentava, conversava, comia nossa pipoquinha. Falava dos desenhos, do Picapau, da Pantera Cor-de-rosa. Hoje em dia, você não fala, você não conversa com seu filho, você não conversa. O filho: “- Ah não, tá mãe.”. É assim mesmo. Mas, pra sentar mesmo, conversar. Nem dá, nem dá pra conversar.

Comentário

Rosimary considera que o modo como a tecnologia vem sendo utilizada representa um dos aspectos de nossa cultura que podem estar distanciando os indivíduos uns dos outros. Você pode levantar os seguintes questionamentos junto aos participantes: vocês concordam com o posicionamento de Rosimary? A tecnologia aproxima ou distancia as pessoas? Que outros fatores contribuiriam para o distanciamento entre os indivíduos? Por que isso acontece? Quais são os efeitos disso? Como o trabalho com a memória pode ser um aliado no combate ao isolamento dos indivíduos? De que modo a tecnologia pode auxiliar o trabalho com a memória?

3.1 O escutador de memórias: bate-papo e roteiro na cena da discussão

O trabalho com a memória visa proporcionar encontros entre pessoas que desejam narrar e escutar. Então, como se realiza um trabalho de escuta de memórias? Que perguntas devem ser feitas? Como devo agir?29

29Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho.
(Ecléa Bosi)

Para que uma pessoa se sinta à vontade e tenha desejo de narrar suas memórias, é importante que o escutador tenha interesse em (re)conhecer as histórias de quem narra. O trabalho do escutador não deve ser realizado de forma burocrática, onde fatos são apenas ouvidos e registrados de forma mecânica. Antes de qualquer coisa, o trabalho com a memória pressupõe um encontro entre seres humanos que, juntos, buscam olhar, indagar e reinterpretar o passado na vida presente. Para tanto, na tentativa de construir uma escuta sincera, o escutador se movimenta no sentido de esvaziar-se um pouco de si para receber as histórias do outro e, depois, de volta ao seu lugar, passa a ser o porta-voz das histórias ouvidas, contando-as e recontando-as no espaço e no tempo.

Rememorar é um trabalho delicado, onde as imagens que surgem devem ser organizadas e colocadas numa cadeia de sentido para que os outros possam nos compreender. Esse percurso não é simples, pois é necessário tempo e reflexão para entrar em contato com histórias que trazem alegria e dor, para ordená-las de acordo com o contexto em que são ouvidas e para expressar aquilo que desejamos compartilhar com outros. Em outras palavras, rememorar é uma espécie de gerenciamento de nossas lembranças, de acordo com as possibilidades de comunicação oferecidas pelo contexto e por quem escuta. Por isso, é importante que possibilitemos ao nosso interlocutor estar bastante à vontade para contar sua história no seu ritmo e à sua maneira, num ambiente em que se sinta seguro, respeitado e verdadeiramente escutado.

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