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No momento do bate-papo, o escutador irá se deparar com alguns interlocutores muito disponíveis para contar suas histórias, mas também com outros com certa dificuldade em folhear as páginas de sua vida, pelo menos naquele encontro específico. Inicialmente, frente a alguém mais resistente, que responde de forma vaga ou muito objetiva às perguntas, talvez seja interessante que o escutador se coloque mais ativamente, até que seu interlocutor se sinta estimulado a entrar em contato com as páginas de suas memórias. Caso isso não aconteça e o escutador perceba que aquele não é um bom dia para a conversa, pode sugerir voltar num outro momento, se a pessoa aceitar. O escutador não deve tentar produzir um discurso a todo custo; dar espaço para a recusa ou a resistência em falar faz parte de seu trabalho.

Uma vez que o bate-papo passe a fluir melhor, a presença do escutador poderá ser mais discreta e as perguntas poderão aparecer mais espaçadamente. Isso é importante para fazer com que o interlocutor se sinta parte do processo e autor do caminho de sua narrativa. Além disso, iniciada a conversa e estando formado o vínculo entre os envolvidos, é importante também que o escutador dê espaço para os silêncios. No trabalho de memória, o silêncio pode não ser uma resistência ao diálogo, mas parte do processo de rememoração.36

37 Quando a narrativa é hesitante, cheia de silêncios, ele não deve ter pressa de fazer interpretação ideológica do que escutou, ou de preencher as pausas. (...) Nos idosos, as hesitações, as rupturas do discurso não são vazios, podem ser trabalhos de memória. Há situações difíceis de serem contadas. (...) A fala emotiva e fragmentada é portadora de significações que nos aproximam da verdade. Aprendemos a amar esse discurso tateante, suas pausas, suas franjas com fios perdidos quase irreparáveis.
(Ecléa Bosi)

Os silêncios figuram como pausas no discurso, momentos onde as palavras podem respirar e o narrador tomar fôlego para novas investidas na memória. É um espaço de suspensão das palavras, no qual aquele que narra, ao viajar nos labirintos de sua memória, revive fatos, reencontra pessoas, revê uma espécie de filme de si como espectador e autor da história. O silêncio pode ser, também, um momento de reflexão e organização das memórias para a partilha com o escutador, um espaço onde se decide que imagem de si será ofertada ao outro. Assim sendo, os silêncios são importantes, pois confirmam o trabalho de memória que é composto por idas e vindas, indecisões, histórias incompletas e contraditórias. Mesmo que, durante um silêncio, pareça que nada acontece, na verdade, é um espaço onde um exaustivo trabalho de memória se faz.37

38 O silêncio depois de uma fala é a coisa mais linda que tem.
(Eduardo Coutinho)

Nem sempre os momentos de silêncio são confortáveis. O escutador, ao se colocar no lugar daquele que conduz a conversa, pode se sentir responsável por provocar novas perguntas, para garantir o desenvolvimento da conversa. Entretanto, o silêncio não deve sempre ser preenchido por palavras. O escutador deve aguardar seu interlocutor voltar de seu exercício de rememoração vivido na suspensão das palavras. A qualidade daquilo que é falado depende também desses momentos sem fala, nos quais o escutador acompanha com tranquilidade e respeito um silêncio que trabalha o passado e as palavras. Um escutador de memórias é aquele que dá espaço para as palavras, os silêncios e as recusas, aquele que sabe esperar o tempo do outro.38

Contando histórias

Ana (escutadora): Me fala uma coisa que marcou muito a sua vida, de bom, que você queira contar, assim...

Sebastiana: Bom, não teve muitas coisas boas, não, mas também as ruins não vêm ao caso.

Ana (escutadora): Com certeza.

Sebastiana: Mas tô tentando viver da maneira que eu posso...

Cíntia (NIMESC): E quando a senhora falou assim: “As coisas ruins não vêm ao caso...”.

Sebastiana: As coisas ruins não vêm ao caso não. A gente tem que falar as coisas boas, as coisas ruins traz lembranças tristes. Aí, não vale a pena contar. Só coisa boa. Coisas ruins não valem a pena, não.

Cíntia (NIMESC): Tiveram muitas ruins?

Sebastiana: Ah, tiveram, mas é coisa da gente mesmo, que acontece e passa.

Cíntia (NIMESC): Mais boas do que ruins?

Sebastiana: Mais ou menos. Agora, está vindo os momentos bons. Mas as ruins já passou...

Cíntia (NIMESC): Não, eu estou pensando que aqui, que as coisas estão melhores, tem muita história para contar, muita luta. A senhora prefere contar as coisas boas, né? Então, se fosse para escolher uma coisa muito boa, um episódio que marcou a sua vida, que seja muita lembrança e muita alegria. Que história seria essa?

Sebastiana: Ah, essa eu posso contar com prazer, do meu esposo, que eu casei há treze anos atrás, que me fez muito feliz, que me amparou, mas morreu. Não, não quero falar não. Deixa para lá, deixa para lá, passou...

Ana (escutadora): Eu sei que é triste, é a situação que está te deixando triste. É muito ruim a gente perder uma pessoa e, de repente, essa pessoa não participar mais da sua vida. É triste mesmo, eu sei, eu entendo. Eu sei o que é perder alguém... Se você sentir vontade de falar, pode falar, senão, não precisa falar também.

Sebastiana: Bom, esse foi o momento bom. Mas tudo bem. A gente vai fazer o quê? Faz parte. Mas foi um momento bom na minha vida, mas eu tô superando. Aí, gente, eu não tenho mais o que falar, não.

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