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33 Nas histórias, todas as vozes da humanidade se encontram, cada qual com a intenção de nos mostrar prazer, mas também a dor, a melancolia, mas também a felicidade, o medo, mas também a coragem, o desespero, mas também a esperança.
(Solange Jobim e Souza)
O reencontro com memórias difíceis, traumáticas, coloca quem narra frente às histórias vividas, mas também em contato com os duros afetos anteriormente experimentados. O escutador será aquele que, como o próprio nome sugere, escuta a dor daquele que narra, testemunha seu esforço para se reaproximar e compreender a sua própria história ao narrar. Saber suportar a dor do outro faz parte dessa escuta atenta e delicada em relação ao que está sendo dito.33
Nem sempre é fácil compartilhar essas memórias, tampouco escutá-las. Quando o escutador se encontra frente a este desafio, pode reagir, mudando de assunto ou desconversando, considerando que, dessa forma, ajudará a pessoa a se preservar do contato com uma memória difícil. Mas, cabe refletir: mudar de assunto preserva quem: aquele que fala ou aquele que escuta? Em muitos casos, ainda que sejam temas difíceis, o interlocutor sente a necessidade de falar sobre essas memórias. O escutador deve, então, estar preparado para recebê-las, ainda que venham com uma intensa carga afetiva, junto com lágrimas e certo nível de angústia ou tristeza. Se o interlocutor quer falar, é preciso que haja quem o acolha.
O ideal é que o escutador esteja preparado para lidar com os assuntos que surgirem, sejam eles quais forem. Mas o escutador também tem seus limites, impostos pelas suas vivências e pela sua história. A dificuldade de se ouvir determinados assuntos é legítima. Pode acontecer de, no momento do bate-papo, o interlocutor trazer um assunto que é muito difícil para o escutador, seja porque ele se identifica com a história ou mesmo porque viveu o mesmo fato ou algo similar (como no caso de escutadores que fazem trabalho com pessoas muito próximas: de seu próprio bairro, comunidade ou família). Se houver um incômodo significativo por parte do escutador, é importante que isso seja compartilhado com seu interlocutor, de forma sincera e delicada.
34 Tudo o que dá valor ao dado do mundo, tudo o que atribui um valor autônomo à presença no mundo, está vinculado ao outro: é a respeito do outro que se inventam histórias, é pelo outro que se derramam lágrimas, é ao outro que se erigem monumentos; apenas os outros povoam os cemitérios; a memória só conhece, só preserva e reconstitui o outro.
(Mikhail Bakhtin)
Essa negociação dos afetos é importante, pois acreditamos que, mais do que um trabalho burocrático, escutar memórias é um encontro entre seres humanos singulares, com suas histórias e fragilidades. O escutador, sendo sensível e aceitando seus próprios limites, se humaniza frente àquele que narra.34
Outro desafio para o trabalho do escutador é lidar com os afetos que podem surgir no encontro com o outro. Como o escutador poderá agir, caso se sinta subitamente emocionado? Se eu sentir vontade de chorar, o que eu faço?
Cíntia (NIMESC): O que foi mais difícil nesse final de semana?
Ana (escutadora): O mais difícil foi na hora com a entrevistada, né?
Eunice (escutadora): No começo, dava um frio na barriga, né?
Ana (escutadora): A gente não sabia. (...) A pessoa assim, a gente falava, aí elas começavam a falar. Daí, a gente puxava um assunto, né? Daí, elas começavam a falar da vida delas. Aí, depois, tinha hora que a gente não sabia... “– Como vou terminar, como vou sair disso?”. Elas começavam a chorar e a gente não sabia como é que fazia pra sair daquele... daquela parte que elas começavam a chorar. Que aquilo é comovente também, né?
Ana (escutadora): Entendeu? Pra gente não chorar junto, a gente tem que... eu tive que sair, saber sair, né?
Cíntia (NIMESC): Então, deu vontade de chorar? Em alguns momentos?
Ana (escutadora): Ah, quando aquela menina falou do esposo dela, que ela perdeu o esposo que era a coisa mais importante pra vida dela. Aí, foi triste. Ela nem queria falar sobre, mas aí acabou falando... Começou a chorar... Aí, ela chorou... Aí, deu um bloqueio, ela não queria mais falar no assunto. Aí, a gente terminou logo a entrevista, com ela chorando.
Se emocionar com a história alheia não é um problema no momento do bate-papo, nem mesmo algo com que o escutador deva se preocupar ou buscar reprimir. Isso porque, para aquele que narra, a emoção de quem escuta pode significar que sua história não é apenas mais uma... Pode, ainda, indicar que o escutador está realmente disponível para o diálogo, não sendo indiferente frente ao que ouve. Esse movimento de identificação e emoção é legítimo e importante o tipo de trabalho que se está fazendo. Escutar memórias não é apenas oferecer escuta, mas se permitir viver, junto com o outro, o seu relato.
35 Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquilo que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida.
(Mikhail Bakhtin)
No trabalho com a memória, o escutador não é neutro, nem imparcial. Ele participa e se envolve com a cena, passa a ser personagem dela. Por isso, assumir os afetos (a lágrima, o riso, o espanto) é parte que compõe o trabalho de escuta. Entendemos que o movimento de assumir a emoção frente ao interlocutor pode não ser uma tarefa simples. O escutador talvez prefira anular seus sentimentos, com receio de se expor ou, mesmo, atrapalhar aquele que conta sua história. Esses cuidados são importantes e devem ser levados em consideração, de modo que a cena não seja totalmente invadida pelo escutador. Entretanto, caso a emoção surja, é um caminho legítimo deixá-la aparecer. 35
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