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Contando histórias

Narrar as experiências difíceis do passado não é uma tarefa fácil, pois quem narra entra em contato com imagens que talvez desejasse apagar. Entretanto, contar é uma forma de proteger o futuro daquilo que não desejamos que se repita. Vamos conhecer a história de dona Natalina:

Natalina: Muitas lembranças, muitas lembranças, é muito bom. Lembrar coisas boas é bom... Agora, lembrar as coisas ruins que é chato (silêncio). Ah, também uma coisa engraçada que eu me lembro, Mariazinha, foi no ataque de Medelin. Eu me lembro no ataque de Medelin, tinha um pedreiro fazendo, o seu irmão tava aí. Aí, quando, aí, o tiro comendo e ele perguntando:
“– Pra onde eu vou?
Aí, eu falei:
– Eu não sei pra onde você vai, não.
Fechei a porta.
E ele:
– Aí, aonde eu vou?
E o tiro comendo...
– Não sei pra onde você vai não!
Eu não podia mandar esconder ele dentro de casa, mas eu não sabia...
Sei lá da onde ele era... Coitado do homem, ficou ali em cima:
– Ai, pra onde que eu vou? Pra onde que eu vou?
– Pra onde cê vai, não sei!.
Tá, fechei a porta.”

Cíntia (NIMESC): Qual é o nome? Ataque de Medelin?

Natalina: Ataque de Medelin. Era a turma do Medelin contra a turma da calcinha. Eram duas facções. Tinha também a turma da Xuxa, né? Não, a turma da... foi no mesmo dia, que eles vieram tudo de peruca loira. Então, Medelin colocou peruca loira, turma da Xuxa.

Cíntia (NIMESC): Eram duas facções.

Natalina: Era.

Marta (escutadora): Era, da parte da caixa pra cá era calcinha, que ela tava falando do pé, da estrada da Nova Brasília pra lá, Medelin. A gente não podia passar da estrada pra Raia. A história era a divisão.

Natalina: Um dia, do ataque de Medelin feroz, até eu sofri aqui, que eles derrubaram a minha janela. Ah, mas quando eles derrubaram a minha janela, eu virei fera. Saí com um pedaço de pau no meio do tiro lá pro lado de fora. Falei, eu vou enfrentar todo mundo de pau. Saí, fui enfrentar o pessoal de pau. Saí, saí. Quando eu fechei tudo, né? O meu filho mais novo era pequeno, ele tinha oito anos. Quando a minha janela pulou no alto, porque na casa do Pé era aqui, era aqui, era encostadinha à minha. Não, era o Valtinho Urubu que morava aqui, era encostadinha à minha. Era encostadinha. Então, eles confundiram. Eles confundiram a minha casa. Quando eu vi a minha janela pular pro alto, eu falei: “- Não, tem alguma coisa.”. Eu peguei um pedaço e falei: “- O que que vocês vão querer?”. Ah, saí. Saí com um pedaço de pau e o tiro comendo. “- Vai pra dentro. Ninguém tem nada contra vocês, porque que vocês derrubaram a minha janela? Ah, eu vou querer outra janela, ah!”. Aquele dia foi fogo!

Comentário

Violência e medo eram assuntos proibidos até muito pouco tempo atrás para os moradores de favelas. Frequentemente, ouvimos a expressão “morador de favela não fala, não vê e não ouve”. Aos poucos, está sendo possível narrar essas experiências traumáticas do passado (mesmo que muitas dessas memórias ainda sejam subterrâneas!). Isso é importante, pois, quando os moradores de favela começam a contar suas histórias, que envolvem a violência e o medo, trazem uma outra perspectiva que, até então, era apenas narrada pelos meios considerados oficiais (como a mídia, por exemplo).

A história contada por dona Natalina nos parece familiar porque, ao longo do tempo, a indústria cultural e a mídia passaram a explorar muito amplamente a questão da violência nas favelas. Entretanto, o discurso dessas mulheres nos interessa porque, ao narrar, elas vencem a barreira do silêncio em que vivem muitos moradores de favela e sentem-se autorizadas a contar uma parte de suas histórias que, até pouco tempo atrás, não poderia ser compartilhada dessa forma.

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