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19 Perguntas de um trabalhador que lê
Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis:
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída
Quem a reconstruiu tantas vezes?
Em que casas da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros,
na noite em que a Muralha da
China ficou pronta?
A grande Roma está cheia
de arcos do triunfo:
Quem os ergueu?
Sobre quem triunfaram os Césares?
A decantada Bizâncio
Tinha somente palácios para
os seus habitantes?
Mesmo na lendária Atlântida
Os que se afogavam gritaram
por seus escravos
Na noite em que o mar a tragou?
O jovem Alexandre
conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou, quando
sua Armada naufragou.
Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a
Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?
Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande Homem.
Quem pagava a conta?
Tantas histórias.
Tantas questões.
(Bertolt Brecht)
Memória em foco
O trabalho com a memória social busca escavar com delicadeza as histórias de vida de um determinado grupo. Entretanto, histórias de pessoas comuns costumam circular oralmente, mas é raro encontrá-las nos livros escolares de História, por exemplo. Por que isso acontece?
Quando trabalhamos com memória social, é importante entendermos que há uma diferença entre as narrativas da História mais tradicionais e as narrativas de histórias de vida. A História é uma disciplina que trata de organizar e analisar os acontecimentos do passado. Busca construir uma narrativa que tenta recuperar, selecionar, organizar e refletir sobre os acontecimentos passados, por meio de documentos e testemunhos. Por ter um compromisso com a verdade, as narrativas que são construídas no interior dessa disciplina é que acabam por definir que acontecimentos são legítimos e quais irão, portanto, fazer parte da versão oficial do passado.
18 Transitar no campo da memória exige cuidado e humildade. O terreno da memória é delicado nele mesmo, por isso exige também delicadeza da parte daquele que se aventura a escavá-lo.
(Denise Sampaio Gusmão)
Entretanto, será que a História narrada nos livros didáticos consegue falar de todos os acontecimentos do passado? Certamente que não. Que fatos são selecionados? Quem os escolhe?
Para se compor uma narrativa histórica, alguns fatos são selecionados e outros não. Isso porque é impossível narrar a infinidade de acontecimentos vividos, pois fazem parte de uma imensa lista que não para de crescer, à medida que os dias correm. A escolha dos acontecimentos mais marcantes a serem mencionados nas páginas da História sofre interferências de disputas políticas e ideológicas mais amplas. Então, os historiadores decidem, a partir de algumas regras, quais fatos devem ser contados. Isso acontece porque as datas, os personagens e os acontecimentos que vão ser gravados na memória de um povo (memória nacional) representam a identidade social deste coletivo. E, portanto, ali se definem aqueles que merecem as glórias e os que merecem ser responsabilizados pelos dissabores de uma nação. Sendo assim, determinados grupos da sociedade têm interesse em fazer com que suas versões prevaleçam sobre todas as outras. Esses conflitos estão na base da construção do discurso da História oficial, pois há um desejo de se ter o poder sobre a verdade do passado.19
20 Todo trabalho de enquadramento de uma memória de grupo tem limites, pois ela não pode ser construída arbitrariamente. Esse trabalho deve satisfazer a certas exigências de justificação... O trabalho de enquadramento da memória se alimenta do material fornecido pela história... Mas, assim como a exigência de justificação discutida acima limita a falsificação pura e simples do passado na sua reconstrução política, o trabalho permanente de reinterpretação do passado é contido por uma exigência de credibilidade que depende da coerência dos discursos sucessivos.
(Michael Pollack)
Ao longo do tempo, vivemos momentos em que algumas datas, comemorações, fatos e personagens são considerados símbolos oficiais do passado. À organização de elementos que representam um momento histórico damos o nome de enquadramento de memória. Porém, nenhum enquadramento é eterno, trata-se de uma representação que pode ser mudada. De tempos em tempos, um conjunto de fatos históricos é rediscutido e colocado à prova, podendo dar espaço para um novo conjunto de episódios que melhor definem o passado de um povo... Portanto, um novo enquadramento.20
22 A história oral é uma história construída em torno de pessoas. Ela lança a vida para dentro da própria história e isso alarga o seu campo de ação. Admite heróis vindos não só de dentre os líderes mas dentre a maioria desconhecida do povo. Estimula professores e alunos a se tornarem companheiros de trabalho. Traz a história para dentro da comunidade e extrai a história de dentro da comunidade. Ajuda os menos privilegiados, e especialmente os idosos, a conquistar dignidade e autoconfiança. Propicia o contato – e pois, a compreensão – entre classes sociais e entre gerações. E para cada um dos historiadores e outros que partilhem das mesmas intenções, ela pode dar um sentimento de pertencer a determinado lugar e a determinada época. Em suma, contribui para formar seres humanos mais completos. Paralelamente, a história oral propõe um desafio aos mitos consagrados da história, ao juízo autoritário inerente a sua tradição. E oferece os meios para uma transformação radical do sentido social da história.
(Paul Thompson)
É importante compreendermos que a História é apenas uma fatia de um imenso bolo recheado de outros acontecimentos que vivem no silêncio. A questão é que, ao longo do tempo, seu discurso foi entendido como sinônimo de discurso oficial e único, determinando o que era considerado legítimo. Olhando apenas sob esta ótica, a experiência humana pode se empobrecer, pois podemos esquecer que o discurso da História não dá conta de todo o passado. Isso porque é apenas uma versão dos acontecimentos considerados mais relevantes. Por outro lado, a História é importante, pois nos ajuda a olhar de forma organizada para nossas vivências do passado longínquo.21
21 A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado... A memória emerge de um grupo que ela une... que ela é, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal.
(Pierre Nora)
Mas há outras histórias a serem contadas e recontadas a partir de nossas memórias, por pessoas que, no presente, trazem as imagens de outrora. São as histórias de pessoas comuns, que, no silêncio de seus cotidianos anônimos, viveram experiências regadas de sentido e de sabedoria. Entretanto, são personagens de enredos simples que não puderam compartilhar suas histórias nos registros mais oficiais. Assim, as riquezas de seus saberes e fazeres ficaram adormecidas em algum lugar de suas memórias, prontas a serem despertadas diante de uma escuta atenta e sensível. E aqui é necessário destacar a importância da história oral, que busca ouvir pessoas comuns, com suas diversas histórias, não se interessando pela verdade dos fatos já consagrados, mas pela verdade que cada um carrega ao narrar suas memórias.22
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