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09 ...cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva... mas nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós. Não é necessário que outros homens estejam lá, que se distingam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem.
(Maurice Halbwachs)

2.1 Memória individual e memória social/coletiva

Memória em foco

No delicado exercício de relembrar, percebemos que algumas memórias chegam até nós com mais facilidade e outras nem tanto. As pessoas que viveram conosco um determinado acontecimento podem ser nossas aliadas neste trabalho de diálogo com o passado. Os fatos vão ficando cada vez mais nítidos, quando ouvimos os relatos daqueles que compartilharam conosco as mesmas experiências. Nossos próximos são parceiros no exercício de escavação de nossas memórias individuais.9

Muitas das memórias que consideramos apenas particulares também fazem parte da memória de outras pessoas, ainda que elas não tenham vivido a mesma experiência. Inclusive, pessoas que nem se conhecem podem viver acontecimentos semelhantes. Esse exemplo nos faz compreender que a memória que julgamos ser só nossa, na verdade, habita a história de muitos outros. Por isso, dizemos que as memórias individuais passam a fazer parte de uma composição maior, que são as memórias sociais e coletivas.10

11 Contudo, se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo. Desta massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas outras, não são as mesmas que aparecerão com maior intensidade a cada um deles. De bom grado, diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes.
(Maurice Halbwachs)

Contando histórias

Para esclarecer um pouco melhor esta questão, trazemos o relato de Dona Natalina, uma das vencedoras do Prêmio Mulheres Guerreiras 2013.12

Maria Guilhermina (escutadora): ...a senhora se acha uma mulher guerreira?

12 Lata D’Água
Compositor: Luís Antônio - Jota Jr

Lata d’água na cabeça
Lá vai Maria
Lá vai Maria
Sobe o morro e não se cansa
Pela mão leva a criança
Lá vai Maria
Maria
Lava roupa lá no alto
Lutando
Pelo pão de cada dia
Sonhando
Com a vida do asfalto
Que acaba
Onde o morro principia.
Lata d’água na cabeça...

As artes também produzem memória, ao guardar, de várias formas, aspectos do vivido. Esta música, ao tratar do cotidiano de Maria, pode ter contribuído para fazer com que, entre tantas lembranças, as mulheres selecionem exatamente aquelas que algum poeta, escritor, compositor ou pintor evocou um dia.

Natalina: Sim. Porque eu sempre lutei na vida, né? Quando eu cheguei aqui, aqui não tinha nada, quase nada, não tinha barracos nenhum, não tinha nada. Água, para a gente pegar água, a gente tinha que sair até a Lagoa Rodrigo de Freitas ou, então, procurar aqui. Ali nós subíamos com a lata d’água na cabeça, chuva, sol, nós subíamos. Não tínhamos luz elétrica, não tínhamos fogão a gás. A gente tinha que bater na porta das obras:“- Ah moço, me arranja uns pauzinhos de lenha.”. E a gente ainda ouvia gracinhas, ainda. E também era muita dificuldade aqui nesse morro, nesse morro aqui era muito dificultoso. Eu conheci a mãe dela, a mãe da irmã Eva ali, eu conheci ela, conheci o pai dela também. Na casa do pai dela também, seu Adão, tinha sempre um calango para poder ver as pessoas, ele gostava muito. Era calango, as irmãs dele, a Juraci, a neguinha, tudo né? Então, esse morro não tinha nada, não tinha calçamento, não tinha nada. Muita das vezes, a gente subia com latas d’água na cabeça, tinha muitas árvores, aí batia nas árvores as latas d’água, a gente escorregava e caía. A gente tinha que voltar de novo, para pegar mais água.13

Ao ouvir os depoimentos de dona Natalina, poderíamos pensar que ela narra fatos que fazem parte apenas de sua memória individual. Entretanto, quando as escutadoras de memória do MUF puderam entrar em contato com as histórias de outras pessoas, perceberam que muitas falaram da experiência de subir morro acima com a lata d’água na cabeça! Ao percebermos que algumas histórias se cruzam e se repetem, ainda que com intensidades distintas, podemos observar na prática, a partir destes depoimentos, a relação entre memória individual e memória coletiva.

13 Calango: dança típica do norte de Minas Gerais e também do Rio de Janeiro. É dançada por pares e com passos muitos simples em ritmo 2/4. No calango cantado temos o improviso do solista e repetição do refrão por parte do coro. Também aparece na forma de desafio entre dois cantadores. O instrumento tradicional de acompanhamento é a sanfona de oito baixos. Um de seus principais divulgadores na virada do século XX para o século XXI é Téo Azevedo, mineiro conhecido como o cantador de Alto Belo, que em 2000 lançou o CD “Forró, calango e blues”, onde aparecem as composições “Calango do pé de bode”, “Calango fandango” e “Cutuca no calango”, todos de sua autoria.

Segundo os relatos dos moradores, nos anos 1960 e 70, as favelas do Cantagalo e do Pavão-Pavãozinho viviam graves problemas de falta d’água e de luz. Quando isso ocorria, criavam-se vínculos de proximidade e solidariedade entre as pessoas, porque viviam a mesma realidade, passavam pelas mesmas dificuldades e buscavam juntas as soluções. Que saídas eram essas? Buscavam água em locais próximos à favela e vinham equilibrando a lata d’água na cabeça morro acima! Uma vida de muita luta. Essa história contada por Dona Natalina faz parte de muitas lembranças de outros moradores da mesma comunidade.

Quando isso acontece, é possível estimular os participantes a interagirem com a fala de dona Natalina: o que este relato fez pensar? Você conhece outras pessoas com uma história parecida?

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