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14 Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória, individual ou coletiva? Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de “vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não.
(Michael Pollack)
Dona Tereza (como ela prefere ser chamada hoje em dia) narra a história de quando seu pai foi fazer o seu registro. Mesmo não estando presente no episódio do Cartório, ela nos conta o que aconteceu. É o testemunho de sua mãe sobre o caso que permite a dona Tereza narrar esta memória, que faz parte de sua história.
Nem todas as impressões que temos do passado vêm de nossa experiência concreta, porque herdamos muitas lembranças sobre nós a partir de histórias que ouvimos. São relatos que chegam até os nossos ouvidos e que “tomamos emprestados”, porque fazem sentido para nós. Passam, então, a ser parte das nossas memórias, porque nos identificamos com eles. Isso é o que chamamos de acontecimentos vividos por tabela.14
Atividade: Garimpando as memórias “vividas por tabela”
Objetivos: Observar, no relato das histórias individuais, se existem memórias “vividas por tabela”.
Material: Caderno e caneta para o registro de histórias interessantes.
Desenvolvimento:
15 Para Halbwachs (2004), a memória se dá não como um retorno a um passado intacto, mas como um processo de reconstrução desse passado, feito a partir de dados do presente.
(Denise Sampaio Gusmão)
Memória em foco
Pensemos na nossa infância: a cada momento da vida, quando lembramos de um mesmo fato, nunca o contamos da mesma maneira. Se conto e reconto algo que aconteceu quando eu tinha dez anos e lembro disso aos quinze anos, é provável que o relato seja diferente e que isso também aconteça aos trinta anos, aos sessenta... Por que isso acontece? Pelo fato de que esse fato vai ganhando outros significados à proporção que a minha experiência vai se construindo. Eu não sou a mesma pessoa olhando para determinado fato aos quinze e aos sessenta anos. Então, uma história nunca vai ser a mesma história; uma memória nunca vai ser a mesma memória. Isso acontece porque o nosso ponto de vista sobre um mesmo acontecimento muda ao longo do tempo.
A memória é resultado de um trabalho de reconstrução dos fatos. A matéria prima são os acontecimentos vividos na nossa experiência concreta, mas também as experiências que foram vividas por tabela. Como a reconstrução é feita no presente, as narrativas de memória são atravessadas pelos sentimentos, preocupações e afetos de hoje. Não podemos recuperar o passado exatamente como ele foi, pois é impossível narrar o que já passou de modo integral e literal.15
Danilo (NIMESC): Dona Dercy, como é que fazia pra chegar lá embaixo com o sapato limpo?
Dercy: Como é que fazia? Você levava um pano dentro da bolsa ou dentro do bolso.
Danilo (NIMESC): Que ia sujar de qualquer forma.
Dercy: Sujava. Era muita lama. Chegava lá embaixo, ficava procurando aquelas aguinha escorrendo, pra tirar a lama e passar o pano (gargalha). Ainda bem que eram aqueles sapatos Vulcabrás, né? (gargalha). Cê tá rindo? Não ri não, hein?! O caso é sério! Tá rindo da desgraça. Hoje em dia, desce e sobe aí à vontade. Você nunca pegou um botijão de gás lá no duzentos na cabeça até lá em cima, não?... É, minha filha, dava um calo danado aquele Vulcabrás, tá? Era todo mundo, menina e menino usava aquilo, tá? É, Vulcabrás. Depois, veio o tênis Sete Vidas, né? Kichute, Sete Vidas, Kichute. Mas, antes do Kichute, veio o Sete Vidas, você estudava o ano todo e ele não deformava.
No trabalho de escuta de memória, não é importante ficarmos preocupados se dona Dercy nos contou o episódio tal e qual ocorreu. O que nos interessa é como o fato se apresenta no momento da narração, ou seja, como ela nos conta hoje. Consideramos que a pessoa é protagonista da sua própria história e da imagem que quer deixar de si para os outros. No momento de escuta dos relatos, é importante deixarmos quem narra à vontade para trazer as memórias que desejar e do jeito que preferir.
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