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2.5 Trauma, testemunho, memória subterrânea e memória herdada: por uma política da memória

23 O trauma é a ferida aberta na alma, ou no corpo, por acontecimentos violentos, recalcados ou não, mas que não conseguem ser elaborados simbolicamente, em particular sob a forma de palavra pelo sujeito.
(Jeanne Marie Gagnebin)

Recordar é fazer um passeio pelos labirintos de nossas memórias. Nesse andar dentro de nós mesmos, reencontramos acontecimentos que nos alegram, nos emocionam, nos trazem saudade. Entretanto, nos deparamos também com episódios de muita tristeza, dor, revolta; com memórias de eventos que não gostaríamos de ter vivido, mas que são parte de nós, ficaram marcados em nossa biografia. Sobre esse assunto, dona Tereza nos diz: “... eu não gosto de lembrar de passado. Passado a gente pode deixar ele para trás. Não adianta você lembrar do passado, se não você vai chorar junto com o passado, vai se desesperar, então eu não quero. Que foi uma vida de miséria, foi”. De forma semelhante, dona Dercy nos fala: “Olha, o que fiz pra superar foi com Deus, foi com Ele que eu consegui superar... e o resto eu não tive, nem gosto de me lembrar, sabe? Que o passado foi tão triste que eu não gosto de me lembrar.”.

No passado de muitas pessoas, infelizmente, constam episódios muito sombrios, que carregam a marca da violência, da tragédia, dos maus tratos, do desrespeito profundo à dignidade da vida humana. Os sinais desses fatos seguem pulsantes na memória de quem os viveu: a dor ainda grita. Neste caso, chamamos de memórias traumáticas as lembranças que seguem vivas, as dolorosas imagens passadas que insistem em não passar.23

24 Narrar o trauma, portanto, tem em primeiro lugar este sentido primário de desejo de renascer.
(Márcio Seligmann-Silva)

Há pessoas que preferem não tocar nessas feridas do passado, pois acreditam que, ao ignorá-las, poderão enfraquecer (ou esquecer) esses capítulos de vida ainda não superados. Contudo, a experiência traumática se caracteriza pela impossibilidade do esquecimento. Ela sobrevive como um passado que não cessa de voltar à tona, uma espécie de pesadelo que volta mesmo contra nossa vontade.

25 Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente.
(Jeanne Marie Gagnebin)

Narrar o trauma consiste em tentar elaborar ou compreender uma experiência para poder continuar a viver.24 Nesse sentido, testemunhar possui um caráter terapêutico. Narrar é também um trabalho de solidariedade com o mundo, pois cabe à testemunha que viveu a experiência não permitir que as cenas de horror sejam esquecidas e voltem a se repetir. Para que haja espaço para uma narrativa que, ao ser contada, elabora e denuncia, é preciso que haja quem queira ouvir com responsabilidade e compromisso o testemunho de quem viveu a experiência, tornando-se – aquele que escuta – também testemunha dos fatos narrados, seu guardião.25

Diferentemente das memórias traumáticas, existem ainda lembranças que vivem no silêncio, não por serem difíceis ou impossíveis de serem narradas, mas por não poderem aparecer, pois, socialmente, não possuem reconhecimento e legitimação. É o que chamamos de memórias subterrâneas. Por motivos diversos, a memória subterrânea não ganha um espaço social (não aparece nos livros e filmes). Entretanto, ela não desaparece, mas vive num certo silêncio, sendo transmitida de geração em geração. A memória subterrânea é proibida e clandestina, mas sobrevive circulando pela via oral entre indivíduos de um mesmo grupo social.26

26 Este exemplo mostra também a sobrevivência, durante dezenas de anos, de lembranças traumatizantes, lembranças que esperam o momento propício para serem expressas. A despeito da importante doutrinação ideológica, essas lembranças durante tanto tempo confinadas ao silêncio e transmitidas de uma geração a outra oralmente, e não através de publicações, permanecem vivas. O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas.
(Michael Pollack)

Mas, quando as memórias subterrâneas saem da cena do silêncio e passam a ser narradas mais amplamente, podem trazer novos dados para a História oficial. Podemos dar como exemplo a ditadura militar no Brasil. Muitas famílias perderam seus entes queridos neste regime, mas não tinham espaço para falar sobre isso. Hoje, está sendo possível o desvelamento das memórias subterrâneas dessas pessoas. São vozes que contestam e reivindicam o aparecimento dos não ditos da história da ditadura, se contrapondo, assim, à única versão dos fatos que tinha visibilidade até então.

A condição de existência das memórias subterrâneas, “viajando” oralmente de pessoa para pessoa, pode possibilitar o aparecimento de uma outra qualidade de memória que chamamos de memória herdada. Há acontecimentos políticos ou históricos que se apresentam de modo tão vivo e forte para determinado grupo, que um indivíduo pode com eles se identificar, mesmo não os tendo vivido, a ponto de tratá-los como uma herança pela a qual deve se responsabilizar. É por isso que, no caso da ditadura, parentes próximos das vítimas ou mesmo integrantes de movimentos sociais compostos por jovens que sequer haviam nascido durante o regime lutam para fazer justiça aos desaparecidos e denunciar os abusos políticos ocorridos na época.

27 Tarefa altamente política: lutar contra o esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do horror (que, infelizmente, se reproduz constantemente). Tarefa igualmente ética e, num sentido amplo, especificamente psíquica: as palavras do historiador ajudam a enterrar os mortos do passado e a cavar um túmulo para aqueles que dele foram privados. Trabalho de luto que nos deve ajudar, nós, os vivos, a nos lembrarmos dos mortos para melhor viver hoje. Assim, a preocupação com a verdade do passado se completa na exigência de um presente que, também, possa ser verdadeiro.
(Jeanne Marie Gagnebin)

O compromisso político do trabalho de escuta caminha no sentido de compreender a importância de se narrar e de se ouvir as memórias, inclusive aquelas referidas aos acontecimentos difíceis, traumáticos, de modo que o sofrimento, a violência e as tristezas do passado não voltem a existir da mesma maneira no presente.27

Esse compromisso não busca impor um culto ao passado, mas compreender que o ato de narrar é ético e político, uma ferramenta contra as experiências que não enobrecem a vida humana. Contar é, também, uma forma de relembrar para denunciar as injustiças sociais.

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